segunda-feira, 9 de maio de 2011

Revolução

A Gramática acordou com um olho só, naquele dia. Ao abrir as únicas pálpebras que lhe sobraram, ainda descobriu que estava cega. Minutos depois, sentiu uma dor que lhe apertava o ventre. A rainha da biblioteca mal sabia que suas páginas estavam bagunçadas e que uma grande guerra se estendia do capítulo 3 ao capítulo 7: um sujeito oculto havia roubado a princesa Normativa e fugido com ela sabe se lá para onde. Por conta disso, a Língua Falada se uniu à Conotação, sua amiga de anos, para tentar se apossar do poder da princesa sequestrada.

Dois exércitos se formaram: um liderado pela Hipérbole, que não se contentava com o fato de perder sua princesa oficial e outro pela Cacofonia, que lutava em prol do eixo Conotação/Língua Falada.

O gerúndio foi o único a não se alistar a nenhum dos exércitos e corria de um lado para o outro, contrariando a vontade geral:

- Não estarei lutando com vocês. Vocês precisam estar se acalmando e voltando para seus parágrafos.

O único santo da Gramática, o chamado Santo Antônimo, que foi beatificado após conseguir um noivo para dona Ênclise, foi conversar com o Padre Paradoxo para ver se ambos bolavam uma ideia que amenizasse o conflito. De tão contraditória, a prosa não deu em nada. Depois de uma briga feia, cada um se aliou a um exército.

A página 6 estava em branco. No meio dessa confusão toda, até os tópicos do sumário correram até o capítulo 3 para ver o que acontecia.

Um sujeito paciente, que observava a guerra do alto de uma das páginas centrais, pendurou uma rede no marcador de livros e foi se deitar. Pra que?! O dorminhoco foi golpeado por uma Onomatopéia que tentava degolar uma interjeição. Enfurecido, mostrou a si mesmo que paciência tem limite. Subiu num canhão e começou a atirar para tudo o que era lado. Acertou no olho esquerdo da Gramática onde estava. Acertou no olho direito também. Cega e de um olho só, a rainha da biblioteca começou a chorar.

Sem mínima consideração, o livrinho de crônicas da estante número 2, que perdia o amigo, mas não perdia a piada, aprontou um escândalo na sala:

- Vejam! A Rainha está caolha!

Fez se o maior alvoroço. A maior parte do reino se compadeceu da coitada. Na prateleira real, os livros chegaram aos montes para prestar auxílio a ela. A equipe de auto-ajuda deu-lhe um abraço coletivo e a encheu de afagos e conselhos.

A Enciclopédia sugeriu algumas práticas milenares de curativos nos olhos. O Livrinho de Piadas veio perguntando o que é que a loira disse para o livro. O Romance Urbano convidou a rainha para conhecer o Rio de Janeiro. A Peça Teatral ofereceu até um papel para a rainha representar no próximo sarau. O Romance Realista já surgiu dando seus toques “super estimulantes”:

- Somos fruto do meio em que vivemos, rainha, e o mundo em que vivemos é mau. É melhor que a senhora esteja mesmo cega. Assim, não enxergará essa realidade tão cruel.

A rainha se sentia feliz em ter tantos a sua volta. Mas nem todos estavam em favor da sábia. Os livros de matemática perderam as contas do tanto que riram da monarca, que há tempos instituíra seu poder sobre as letras e os números que moravam ali. A oposição começou a se formar. Um tratado iluminista saltou da estante número 5 e propôs uma parceria com os que se opunham à supremacia da Gramática. Aspirantes a republicanos, amantes da democracia, racionais e calculistas, os opositores tramaram um golpe de Estado.

Depois de um treinamento que durou dois meses, o exército revolucionário resolveu atacar. O que ninguém imaginava era que o primeiro tiro de canhão seria barulhento o bastante para acordar a princesa Normativa, que dormia sob o efeito de um sonífero na borda de uma Antologia de Olavo Bilac. Há alguns dias, ela havia sido presa ali por um sujeito oculto e queria voltar para o ventre da rainha, sua mãe. Sem hesitar, ela subiu sobre as “Velhas árvores” da página 9 e pulou de volta para a Gramática. Quando viu a guerra lá dentro quis fazer um acordo com a Língua Falada e com a Conotação:

- Podemos reinar juntas. Vocês dependem de mim e eu dependo de vocês. Deixem de lado essa guerra e darei o poder que merecem.

A Língua Falada e a Conotação aceitaram o cessar fogo. Aliás, a guerra terminou definitivamente. Milagrosamente, a Gramática voltou a enxergar e estava mais segura de si do que nunca. Traçou um acordo de paz com a oposição ao se dar conta de que jamais representaria uma verdade absoluta. E naquele mundo colorido, sem certo e sem errado, a democracia foi instituída.

Em uma noite de verão, sob a garoa paulistana de 1922, certo poeta encontrou uma gramática bagunçada em sua biblioteca. Encantado com tamanha harmonia entre o correto e o incorreto, quis defender um meio termo. Foi apoiar o Modernismo.